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SANGUE DE ADÃO

de Márson Alquati

PRÓLOGO

            Fazia tanto tempo que eu não colocava os pés em solo sagrado, que senti uma forte claustrofobia tão logo adentrei o santuário. Parei ainda na porta, respirando com dificuldade e suando frio. Se não fosse pela minha filha Samara, com 13 anos na época, incentivar-me a prosseguir, acredito que teria simplesmente virado as costas e corrido para longe daquele lugar intimidador e sufocante.
        - Vamos lá, papai! – a doce menina praticamente arrastou-me para o interior do templo religioso, apoiada pela mãe que, mesmo sem nada dizer, também deixava clara a intenção de participar do culto naquela manhã.
       Os bancos de madeira da catedral encontravam-se quase vazios. Poucas pessoas haviam comparecido à cerimônia que teria início dali alguns minutos, mesmo diante da importância atribuída à ela por seus organizadores.
    No altar, lindamente enfeitado com imponentes ramalhetes de flores coloridas, um porta-retratos ostentando a imagem de uma criança alegre e sorridente era o principal adorno, emoldurado por quatro velas acesas. Atrás dele, uma escultura, em tamanho natural, de Jesus Crucificado, se projetava da parede, como que a abraçar a todos os que ali se reuniam.
     Atravessamos, com passos hesitantes, a enorme nave da igreja, de mãos dadas, cumprimentando os conhecidos. Sentei-me entre as duas mulheres mais importantes de minha vida, na primeira fila, bem defronte ao altar. Um nó se fez presente em minha garganta ao fitar mais atentamente a fotografia sobre a mesa, ao que um par de lágrimas solitárias brotou de meus olhos. Eu não fiz qualquer menção de evitá-las, permitindo que elas me banhassem a face pálida.
       O remorso e a dor ainda eram muito fortes e recentes. A culpa era como uma ferida aberta, que jamais cicatrizava. Já fazia um ano e eu ainda não havia aprendido a conviver com a tristeza que tomara conta da minha vida, desde aquele fatídico dia. A partir de então, depois de consumada a tragédia que me roubou a felicidade e me arrancou toda a razão de viver, eu construí uma espécie de redoma invisível ao redor de mim mesmo, tornando-me prisioneiro do meu próprio desespero e da minha própria dor. A depressão não demorou em acometer-me, transformando-me em uma pessoa introspectiva, rancorosa e infeliz.
      Desde aquele funesto dia, quando a desolação me flagelou o espírito, golpeando-me diretamente no coração e na alma, eu nunca mais fui capaz de sorrir. Nada mais me alegrava, nem a família ou o emprego no banco do qual tanto gostava e que acabara abandonando. Nem mesmo a inveterada paixão pelos livros e pela arte da escrita, aos quais dedicara tanto tempo em minha vida anterior, mas que agora se encontravam relegados ao esquecimento.
         Tudo o que eu apreciara antes, perdera a razão de ser depois da minha tragédia pessoal. O próprio mundo perdera a cor, tornando-se opaco e sofrível. E o pior de tudo era que até agora eu não entendia o porquê de tudo aquilo.
        Com apenas 39 anos de idade, eu parecia agora um velho de 70. Magro e debilitado por não querer mais comer, mal conseguia andar, vivendo à base de antidepressivos. Os cabelos castanhos, antes fartos, fortes e bem cuidados, agora não passavam de uma massaroca branca, quebradiça e rala. As olheiras e o constante mau humor completavam o nefasto quadro. Eu não tinha disposição para nada. Vivia recluso em minha casa, enclausurado pela dor e sem querer ver ninguém.
        Os meus dias eram passados geralmente no escritório, onde eu podia chorar à vontade sem que fosse interrompido. Fazia muito tempo que eu não escrevia uma linha sequer. Usava o notebook apenas para visualizar ininterruptamente os álbuns de fotos virtuais, que tanta mágoa e amargura traziam ao meu coração. Em várias oportunidades, cheguei a pensar seriamente em me suicidar ali mesmo, mas a falta de coragem sempre me impedia de ir adiante.
         Aquela era a minha primeira saída de casa em um ano inteiro, a minha primeira aparição em público, desde que a “grande tragédia”, como eu a denominava, abatera-se sobre a minha família.  
          Abatido e angustiado, instintivamente desviei os olhos do porta-retratos sobre o altar, elevando-os para a imagem do Cristo Crucificado que se agigantava imponente atrás dele. Encarei-a com um semblante desgostoso.
         “Por que permitistes isso? Onde tu estavas quando aconteceu?” – indaguei mentalmente, sentindo a raiva aflorar. A raiva dos injustiçados.
         – Por quê? – balbuciei entre dentes, com amargura na voz.
      Patrícia, minha dedicada esposa, pressentindo que eu estava prestes a deixar-me dominar pela emoção, apertou a minha mão, transmitindo-me a força necessária para que eu recuperasse o autocontrole. E, mesmo sem pronunciar qualquer palavra, ela cumpriu seu intento.
       Respirei fundo, recompondo-me no exato instante em que escutei um hino de louvor ser entoado através do moderno sistema de som da igreja. Logo em seguida, o reverendo surgiu da sacristia, dirigindo-se ao altar para iniciar os ofícios do dia. O homem cumprimentou-nos. Abriu a Bíblia sobre o altar e, após as tradicionais boas-vindas à comunidade presente, começou a ler em voz alta uma passagem que falava de morte e ressurreição. Da vida além da vida.
    Incapaz de prestar a devida atenção ao sermão, discretamente passei a observar as outras pessoas presentes. A maioria delas continuava a conversar, embora agora o fizessem em voz baixa; algumas rindo descontraidamente, enquanto seus vizinhos de banco se distraíam lendo qualquer coisa que tivessem à mão ou mexendo no celular; e outras ainda, reparando nas demais ou fofocando descaradamente, e completamente indiferentes ao assunto principal do culto. Era como se estivessem ali apenas para cumprir com a sua obrigação religiosa semanal, um mero compromisso social sem maior relevância.
       Sentindo-me incomodado pela atitude ausente, para não dizer desrespeitosa, por parte daqueles homens e mulheres que me cercavam – exceto minha esposa, filha e uns poucos amigos acomodados nos bancos mais próximos e que se concentravam na mensagem proferida pelo padre –, surpreendi-me perguntando-me o que fazia ali. A única resposta que obtive, novamente olhando entristecido para a fotografia no altar, materializou-se através da vívida recordação dos dolorosos fatos que invariavelmente me conduziram até aquele ponto.
       Sem conseguir deter a enxurrada de imagens que passou a desfilar por minha mente, fechei os olhos e me deixei levar pela correnteza das lembranças, mergulhando fundo no inexorável tsunami do próprio passado.
       De repente, retrocedi ao instante exato em que tudo começou...

 

CAPÍTULO I





     Era uma típica tarde de sexta-feira. Após o estressante expediente no banco, onde trabalhava há quase 20 anos, eu retornava ansioso para casa. Pois, além de rever a família que tanto amava, também planejara terminar de ler o último romance do meu autor predileto naquela noite.
     Eu já sabia, de antemão, que minha esposa e os meus filhos me incomodariam por conta disso, uma vez que tinham de disputar a minha atenção com o trabalho no banco e aquela atividade paralela, desenvolvida nas horas de folga e que consistia basicamente em ler e escrever livros de ficção fantástica. Eles não entendiam que a leitura era encarada por mim como um segundo trabalho, já que eu buscava nela a inspiração para dar continuidade ao livro que estava escrevendo, baseado no mesmo assunto. Ou, então, que eu precisava disso para aliviar as tensões do dia a dia. E que ler e escrever eram as minhas principais fontes de lazer, para não dizer as únicas, uma vez que nada mais me satisfazia tão plenamente quanto isso.
     Os programas familiares e sociais, geralmente sugeridos por Patrícia e que envolviam os nossos filhos, os nossos parentes e os amigos mais próximos, eram vistos, por mim, como mera perda de tempo.
     Sim, eu tinha consciência de que depois que começara a escrever, me tornara um pai e um marido omisso, distante e com o pensamento inteiramente voltado para os livros. Tentava convencer a mim mesmo de que aquela era uma situação temporária. Eu tinha certeza de que assim que o meu romance fosse lançado e começasse a fazer sucesso, os compensaria, voltando a me dedicar plenamente à família.
    Contudo, naquele momento, a minha prioridade principal era trabalhar no livro. Só de pensar na chateação que teria de enfrentar em casa, senti-me profundamente irritado.
     A fim de distrair-me, enquanto guiava o carro, resolvi ligar o rádio.
   — Nada como uma boa música para relaxar o corpo e a mente, depois de um dia de trabalho estressante! – murmurei comigo mesmo.
    Assim que sintonizei o aparelho, uma voz rouca invadiu o veículo.



  “No capítulo 14, do Evangelho de João, nosso Senhor Jesus, o Messias, faz uma promessa que devemos guardar em nosso coração, por toda a eternidade. Ele diz: Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu pai há muitas moradas...”.



   Fazendo uma careta de repulsa, rapidamente troquei de estação.
   — Era só o que me faltava! Não sou crente para ficar ouvindo sermão pelo rádio em plena sexta-feira... Será que existe alguém, hoje em dia, que ainda perde tempo com essa babaquice? – indaguei-me em voz alta, ratificando mais uma vez a minha posição de ateu convicto.
   Desde a juventude, quando aprendi a pensar por mim mesmo, deixei de crer em toda e qualquer religião, em suas superstições e em seus dogmas. Os inúmeros livros que tive a oportunidade de ler me forneceram subsídios, bem mais do que suficientes, para que me tornasse agnóstico e, mais tarde, enveredasse para o ateísmo total. Nem mesmo depois do meu namoro e do posterior casamento com Patrícia, que descendia de uma família estritamente religiosa – daquelas que todos os domingos frequentava a missa – eu mudei a minha forma de enxergar as coisas. Pelo contrário, inúmeras vezes tentei, sem sucesso, mudar a opinião de minha esposa.
   Mas Patrícia sempre permaneceu irredutível e fiel em sua fé. Muito embora, por minha causa, ela já não frequentasse mais a igreja como antes, ainda rezava todas as noites e mantinha uma pequena versão da Bíblia em sua bolsa. Sempre que podia, preferencialmente quando eu não me encontrava por perto, ela a lia escondida. Isso se devia ao fato de que, nas parcas ocasiões em que eu a flagrara lendo alguma passagem, cruel e insensivelmente desdenhara dela e da sua crença, magoando-a profundamente. De modo que, para evitar novos constrangimentos, ela optara por fazê-lo longe de mim.
   Ah, como gostaria que o arrependimento fosse capaz de corrigir as nossas falhas do passado. Assim eu não precisaria mais conviver com tamanha culpa. Mas, como as coisas não funcionam dessa maneira, deixemos as divagações e o remorso para mais tarde e voltemos agora a nossa atenção ao que realmente interessa...
   A segunda estação de rádio sintonizada por mim naquele final de tarde era uma emissora de notícias 24 horas. A sinaleira abriu e eu precisei me concentrar no trânsito, deixando o rádio de lado por alguns momentos, no que me vi obrigado a escutar as notícias que estavam sendo levadas ao ar.



    “Antes das notícias a respeito da próxima rodada do Campeonato Brasileiro, temos novas informações sobre as estranhas mortes que vêm ocorrendo nas colinas da Índia. Segundo as fontes oficiais do governo indiano, de ontem para hoje subiu de quatro para dez o número de vítimas fatais, ao norte de Calcutá, de uma nova moléstia altamente contagiosa e que, conforme afirmam os médicos responsáveis pelo caso, apresenta um quadro sintomático bastante semelhante ao de uma simples gripe comum. O que os está deixando apreensivos, entretanto, é que a nova doença vem se manifestando muitas vezes mais potente do que as gripes normais, fator que a tem tornado extremamente letal. E, para piorar a situação, o agente viral que a transmite demonstrou ser amplamente resistente, imune a todos os medicamentos ministrados aos pacientes diagnosticados com a enfermidade, os quais continuam inevitavelmente morrendo poucos dias após apresentarem os sintomas iniciais. Em 100% dos casos registrados até o presente momento, nenhum paciente sobreviveu. Ouça a cobertura completa no nosso Jornal da Noite. Agora vamos ao futebol...”.



    “Ainda bem que estamos do outro lado do mundo...” – pensei comigo mesmo.
   O sinal fechou mais uma vez. Sem prestar maior atenção ao noticiário, eu pude enfim procurar, até encontrar, uma estação de música que me agradasse.
    Afrouxei o nó da gravata e relaxei o corpo. Quando o sinal ficou verde prossegui, acompanhando as letras que tão bem conhecia até em casa.



     Mal sabia eu que o Apocalipse estava só começando...





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